Fernando Lanhas
Expresso Cartaz de 21/4/2001, pp. 28-29
Sonhei que sabia tudo
As perguntas, os deslumbramentos, os sonhos e os quadros de Fernando Lanhas
Na sala central do Museu de Serralves, as últimas pinturas de Lanhas, já de 1998-2000, coexistem com vitrinas de trilobites e meteoritos. Numa parede, lê-se: «Sonhei esta noite com trilobites vivas. (…) Em certo momento vi uma trilobite grande, de cor dourada, que estava mutilada nas pleuras. Peguei na trilobite sem qualquer receio, para a ajudar. Era uma trilobite muito sossegada e meiga. As crianças até lhe faziam festas.», S322A (sonho 322), 16-17.XII.92. Dois mapas assinalam os principais meteoros e meteoritos caídos em Portugal e a trajectória de um meteoro observado em 1984.
Uma representação da «Noção da grandeza do tempo» (98-2001) e um «Mapa das ocorrências verificadas no Universo desde a explosão inicial» (63-73) expõem-se na mesma galeria. Adiante encontramos o «Estudo do quadro geral do Universo», a «Carta das distâncias entre o sol e algumas estrelas», um herbário com variações morfológicas de folhas de hera ou um aspecto da Praia da Luz tal como seria observada pelo «homo sapiens», 18 000 anos a.C. Para além dos objectos naturais que recolheu ou coleccionou, tudo são obras de F. L.: sonhos, mapas, cronologias e esquemas gráficos ou tridimensionais sobre temas de astronomia, geologia e arqueologia, por vezes realizados para museus ou enciclopédias. A evolução do cosmos, da Terra, das espécies e do Homem, as representações do tempo e do espaço, as distâncias e grandezas cósmicas dominam os interesses de um homem que não se identifica como artista e se diz «talvez meio cientista e meio filósofo.»
A sua pintura dita abstracta, reduzida a formas mínimas e a poucas cores constantes, transporta um mesmo deslumbramento e uma idêntica meditação sobre as escalas do tempo e do espaço que F. L. investiga no campo científico. Alguns quadros nascem de composições gráficas; outros, mais densos e inexplicáveis, mais metafísicos que geométricos, perseguem o movimento das forças e formas naturais, as dimensões do cosmos. Por vezes deixam adivinhar representações simbólicas: sol, árvore, pássaro.
Os sonhos são outra pista para seguir a imaginação de Lanhas: «Sonhei que sabia tudo, que alcançara o conhecimento das coisas, da razão de ser», S42, de 1973. «Sonhei toda a noite com a representação gráfica da evolução do nosso Universo. (…)», S149, 1984. «Sonhei com manchas de cor azul, castanha e cinza», S13, 1963. «Sonhei com um estudo para uma pintura. A composição teria por base a letra N, em que se observa uma inclinação da letra para o lado direito (…)», S45, 1973.
Uma obra assim é idiossincrática e única. Esta pintura, quase invariável ao longo de cinco décadas, não se cataloga como um estilo na sucessão das classificações da história da arte, mas também não se explica pelas ocorrências de uma biografia muito rica de interesses e actividades. Arquitecto, Lanhas pintou cerca de um quadro por ano, irregularmente, foi inventor (o Fotalto, o Cosmoscópio), fez descobertas arqueológicas, projectou museus e exposições, dirigiu o Museu Etnográfico e Histórico do Porto, de 1973 até 93, interessado em arte popular e brinquedos. E a cronologia do catálogo inclui outros dados como, aos cinco anos, a observação do comportamento das formigas com uma lupa ou, em 83, o projecto da recepção ao Papa na Diocese do Porto.
Tal como sucedeu na retrospectiva de 88, a abordagem de Serralves é (des)centrada na personagem Lanhas e segue-lhe os diversos rostos. Trazem-se à superfície mais alguns dos primeiros quadros, reúne-se toda a pintura recente (a década de 90 é a mais produtiva depois dos anos 60) e o catálogo traça um inédito itinerário biográfico e o inventário de exposições e bibliografia (com erros e lacunas, mas é um começo).
Esperar-se-ia um estudo psicanalítico dos sonhos, o registo das contribuições científicas, o perfil do museólogo e do etnólogo. Em vez disso, o catálogo concentra-se em exclusivo no pintor, reunindo ao estudo inicial de João Fernandes partes de anteriores ensaios de Fernando Guedes, João Pinharanda, Matos Chaves e Bernardo Pinto de Almeida que em geral ainda estão disponíveis. É um «coffee table book», coedição ASA, que prescinde da análise metódica, identificando a aparição pública dos quadros e a recepção crítica.
Fica por estudar a intervenção de Lanhas nas Exposições Independentes, que alteraram o panorama artístico no fim da 2ª Guerra, promovendo o debate sobre a abstracção a par das primeiras afirmações neo-realistas. Em 45, Lanhas colabora com J. Pomar e V. Palla na organização da página «Arte» do diário «A Tarde», do Porto (é o próprio que o refere nos catálogos de 49-50), onde os futuros surrealistas Cesariny, Vespeira e Oom também defendiam a «arte útil». Lanhas publica aí os estudos para Tambores (Velha com Lenço) e Velha Branca, que integram o conjunto de pinturas figurativas agora exposto. São obras posteriores às primeiras abstracções e dão testemunho das ambições do pintor e do debate sobre as implicações sociais da arte, o qual está representado em O Artista Abstracto (mostrado apenas em fotografia). Segue-se Catarina (A Fealdade Magnífica), de 46; em 47 Lanhas visita Paris e retorna ao abstraccionismo.
A situação é tanto mais curiosa quanto Lanhas, em sucessivas declarações, atribuiu a Júlio Pomar o estímulo para expor as abstracções de 44, para além de a anterior retrospectiva ter dado a conhecer um texto datado de 48(?) que surge como uma das suas primeiras defesas («Meridionais, nunca fomos propensos à familiaridade com o mínimo. A pintura de Lanhas faz exclusão de tudo o que lhe aparece como superficial, chega para alguns a tocar as raias da secura. Não temos o hábito da concisão. (…) Lanhas obstina-se a usar o mínimo de meios, o mínimo dos mínimos. (…) escolhe três cinzentos, às vezes menos (?), e fica-se com eles para um ror de experiências»). Depois, Lanhas prosseguirá no desenho um discurso figurativo, com os retratos e alguns temas simbólicos (Menina e mar, D23 - 1999).
Um outro tópico a aprofundar diz respeito ao facto de a obra de Lanhas ter circulado, dos anos 40 aos 60, no âmbito das iniciativas do SNI, embora surgisse também em circuitos independentes, como a Galeria de Março, de J.-A. França. Esse itinerário (representações enviadas ao estrangeiro, Salão dos Novíssimos de 59, etc) serve de desmentido à alegação que abria o catálogo dos anos 60/70 editado por Serralves, sobre os artistas que «ousaram romper com o academismo e o atraso da cultura oficial do regime político de então». A abstracção de Lanhas fazia parte dessa cultura oficial. Os velhos equívocos convenientes da cultura oposionista já não servem para nada.
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